Eu gosto de pensar que eu sou uma máquina, e que eu sou um bicho. Conceitos diferentes mas me consolam porque me mostram que existe um caminho. Ser máquina é fazer a manutenção certa pra funcionar. Ser bicho é sempre se virar e ter impulsos que não precisam de esforço ou explicação porque estão encarnados em mim, fruto de longas gerações de aperfeiçoamento.
Agora ser humano é aterrador. Não existe fórmula, nem caminho, nem respostas certas, escolhas certas, visão de futuro, esperança.
O ser humano até planeja, mas isso não é VER o futuro. Simplesmente não sabemos. E quando a ansiedade estica os seus bracinhos, ela se agarra em qualquer tópico, pula de galho em galho na árvore da minha compleição interna, esmagando cada fruto e fazendo escorrer seu suco no meu coração.
Meu coração este domingo ficou vazio. Em outros momentos senti frio no coração, gelado. Ficou vazio e senti que as placas de metal nas minhas costas estavam abrindo suas frestas, e que entre o ombro e a escápula se abria uma passagem escura, permitindo que o que está dentro ficasse vulnerável.
Eu que estou dentro se querem saber. E a vida perdeu o sentido. Nada do que eu sei que gosto parecia interessante, e pior, parecia valer a pena. Os prazeres não existiam e a possibilidade deles quase doía quando pensava de imediato que seriam passageiros e abririam novamente o buraco do vazio. Vida vazia.
Tudo que me consolava imediatamente se tornava uma ameaça, porque eu dependia daquilo pra estar feliz, e é ruim depender. E também, por quanto tempo ou quantas vezes eu teria aquilo em minha vida? E também, não se pode ficar pra sempre vendo videos de compilado de comida no youtube, e ver vídeos curtos estraga a cabeça então como poderia ser benéfico?
E sem saber, sabotei tudo que poderia me curar. Nada valia a pena ser tentado, e eu subestimei tudo. Enjoei, descolei, parei de fazer parte. Parecia desligada do mundo, mas quando encarava a vida vazia ela parecia cruel e real.
Lembrei de duas semanas atrás quando eu dizia que queria viver muito, e como eu acreditava que a vida valia a pena. E agora ela não tinha sentido algum, e eu me perguntava como em qualquer parte do mundo qualquer pessoa podia achar algo minimamente interessante, valoroso, e viver sem estar em sofrimento.
Quatro dias foram o suficiente para sair do fluxo das coisas e sentir o vazio aterrador no meu coração. Desespero. Em quatro dias.
É como se eu descobrisse que minha vida é um cenário montado no palco. Eu consigo enxergar as frestas imensas entre as escoras que seguram as peças do cenário. Prontas pra cair.
Olhar o vazio do bastidor me assustou.
Tudo que eu fiz no palco, todo esse tempo, por mais que eu estivesse envolvida naquilo... E quero voltar a me envolver porque é tudo que há. Mas tudo pode cair de uma hora para a outra.
A gente nunca sabe quem vai ajudar a segurar nosso cenário, nem por quanto tempo ele vai ficar de pé.
Eu, que nunca cultivo sonhos, planejava erguer outras peças pintadas naquele fundo, mas contemplar tudo isso de uma vez me apavorou e me fez ver que no fim, o movimento é sempre o mesmo. E pensar em mudar tanto de uma só vez, quando existem tantos espaços vazios aparecendo para o público... É assustador.
Depois de sentir a minha vida ser arrancada de mim, eu comecei a grudar ela de volta, e já sinto as pecinhas se ligando, mas vejo as brechas. Eu detesto a ideia de estar distraída do vazio, mas talvez seja o primeiro passo antes de voltar com tudo. Se eu preciso viver daqui até o fim distraída, então que seja. Prefiro viver numa ilusão confortável que numa suposta verdade absolutamente desprovida de sentido.
Então eu já comecei a ver as coisas e sentir elas de novo. Não é fazer sentido, é sentir. Eu me senti tão bem vendo os cenários do Wes Anderson no último filme que assisti. E para algumas coisas eu ainda sinto com ansiedade, mas para outras eu sinto de forma equilibrada e ordinária.
Os sentidos se mesclam e produzem impressões baixinhas e tranquilas, que acrescentam quase nada e não incomodam nem pela emoção nem pelo desespero de não produzirem nada. As ligações estão lá, suaves como devem ser. Cada elemento sendo absorvido pelos meus sentidos e pendurado no seu galhinho.
No fim, é tudo sobre sentir. E pra sentir precisa lubrificar a maquina-corpo-bicho-mente-humana. Precisa de música, de movimento, e de todas as barrinhas de necessidade pelo menos no amarelo. Não adianta só saber, precisa estar lá pra poder começar a sentir.
E o medo de ver as frestas permanece, principalmente antes de abrir os olhos.
(Afinal até onde um espaço pode ser chamado de fresta? Porque o espaço entre uma escora e outra, a menos que hajam inúmeras ou que sejam muito grossas, é tanto que se torna muito mais relevante falar do fundo e das escoras que falar das frestas entre elas)
de 4 a 8 de junho de 2024