Como é que pode essa cidade cara?
Como é que pode eu gostar tanto desse sol nublado que queria estar truando em cima de mim? Monte de mato, monte de mato e areia, lama grudando na minha chinela, caco de azulejo, quenga de coco, pedaço de tijolo, plástico, buraco. Como é que pode eu gostar tanto desse desleixo todo daqui. A precariedade. O muro todo desbotado e mato e mato. Cocô de bixo na rua de casa, cheiro ruim na frente de casa, cheiro de bicho podre, cheiro de cheiro verde estragado daqui a duas ruas. E mato e mato. Céu bonito no fim de tarde, o morro e mato e mato.
O catavento, e os matos crescem como crescem as crianças, já estão até falando. "Não, não". E de noite a lua cheia enorme e abridora de queixos caídos, ou misteriosa atrás das nuvens. Nossa que delícia de cidade. As fileiras de buggy numa ruazinha. De cores pálidas e bonitas. O vento frio que às vezes arrisca entrar.
Quem vê borboleta acha que é bonito mas não sabe o destroço que faz. E não sabe o quanto que eles são safadas se agarrando voando na frente da minha casa. Mosquito dando rasante no meu cabelo. Tudo quanto é bixo invadindo, vindo morrer, vindo voar, estabanar as asas e atentar meu juízo. Ontem joguei um pra fora a muito custo, num pulo ele voltou. Arrombado véi desse. Caramujo e lesma, colêmbolo e mosca. Tudo aqui vindo do mato, mas esse meu. Menos bonito que o dos vizinhos tal hora, não tem os cachos bonitos de variedades caindo por cima da gente. Mas pelo menos é acessível, tem o pé de acerola mágico que dá fruta uma atrás da outra, e o pé de siriguela que também é mágico porque nunca dá fruta nenhuma.
Os gatinhos que andam pela rua são a coisa mais fofa. São novos que alguém largou aqui. Tem três, dois cinza e um preto, andam sempre grudandinhos e ficam com as cabecinhas uma em cima da outra.
E toda música indie combina com minhas ruas. A noite é bela e o dia é quente, molhado e bonito. Bonita demais essa minha cidade, como é que pode?
Como é que eu não ando mais nas ruas dessa minha cidade? De tarde tudo vazio, quase silencioso. Crianças gritam na quadra se você chega perto pra ouvir. Cachorro late pra moto, gato mia. Um barulho de metal batendo, um vizinho martelando uma parede.
Fora isso, silêncio. Não faz medo andar na rua. Faz medo levar uma topada. Cair no meio da areia, na frente de uma casa de portão aberto.
Mas fora isso é de boa andar, parece que eu tô em outro canto de muito tempo atrás. Pois mande avisar Cazuza que eu achei. Tá aqui, foi duas voltas no meu bairro eu achei. Ô cidade bonita.
A gente trabalha duro pra viver simples. Eu só queria manter isso aqui. Deixar mais limpo talvez, fazer as coisas mais fáceis e mais organizadas, mas no geral é isso. Eu gosto disso daqui.
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