domingo, 27 de novembro de 2022

Uma noite assistindo a camerata de cordas da universidade da cidade.

    Ontem vi uma árvore com folhas nas cores amarela e verde, só dois tons, e os espaços escuros. Pensei "Essa árvore não pode ser comum", apesar de que fosse, não era. Porque na frente dela, em plano mais baixo (em relação a árvore) e em plano mais alto (em relação ao público), estava montado um palco com uma camerata. 

    Eles executavam músicas que tocariam qualquer um por ser o que são, por suas idas e vindas, pela emoção que produziam. Mas tocavam mais ainda aquele público, presente por gostar dos filmes para os quais as músicas foram compostas, filmes que em sua narrativa e visual já conseguriam encantar.

    Entretanto, estes são filmes produzidos por um homem que soube fazer o papel de um grande artista: Exprimir sentimentos que existem em todos nós, mesmo que nem sempre lembremo-nos deles ou sequer atentemo-nos, mas, este homem foi capaz de colocar nestes filmes, de forma nunca antes vista (por mim) tais emoções e climas (aqui colocados no meu entender do que é um clima).

    O fato de uma musicalidade deliciosa estar associada a um trabalho audiovisual tocante já seria o suficiente para que, ao serem transportadas estas músicas para o real, no tocar de um violino, e vários outros instrumentos, e ao trazerem, no reger do maestro, do imaginário para o presente um pouco do mundo aqui descrito; aquela árvore se transfigurasse numa coisa especial. Porque basta uma simples luz amarela apontada para ela, para que uma árvore nessas condições sofra a transmutação mágica do encontro do real com o fantástico. Da suspensão do tempo. 

    Mais que isso para mim. Esses filmes me foram apresentados numa época especialmente delicada. Um deles me fazia dormir todas as noites quando nada mais conseguia. Outro, me inspirava a tentar tirar esses sentimentos da tela para fora. As narrativas que eles criaram dentro de mim se misturaram de tal forma com o que é especial que eu não pude conter um leve arrepio nos lados da nuca e algumas lágrimas que escorreram enquanto eu ouvia, naquela praça, no meio de uma cidade que tanto me fez mal, um pouco do que também me cura. 

    Naquele palco eu vi meu passado, vi o que se esconde em mim fora do tempo e me faz bem, vi o que busco e o que temo. Vi uma tentativa tímida e corajosa de unir tecnologia e música. Vi que não é preciso muito para fazer o incrível, mas que é preciso estar atento para se jogar nele. Quis estar presente. Tirei os óculos para enxergar o real. Fechei os olhos para ouvir o real e imperfeito mas que me servia tão bem. Por tão pouco quase deixei tudo aquilo escapar. Pensei: O quanto a gente subestima a cultura... 

    Quando, ainda este ano, vi uma frase do célebre Sociedade dos Poetas Mortos, não a achei tão real como agora depois da experiência de ontem: “Medicina, direito, administração, engenharia são atividades nobres. Mas poesia, a beleza, o romance, o amor são as coisas pelas quais vale a pena viver”

    Vi mais naquele palco. Os ciclos, ou melhor, a linhas que conectam fatos e lugares. Vi o futuro de um dos meus amigos e também uma reflexão de como o Maurício de Souza vive numa realidade tão distante da minha, que só ontem entendi porque ele desenha roupas masculinas de um jeito tão específico. 

    Houve um momento em que veio para a frente do palco uma menina. Todo o tempo a mãe dela estava, com uma elegância cinematográfica, guiando e apresentando a sequência de músicas da camerata. Ela (a mãe) usava uma blusa preta de manguinha, elegante e delicada, com um tecido suave e brilhoso. Uma calça preta opaca, com a mesma elegância da blusa (não poderia aqui descrever detalhes de corte e costura, por isso uso esses adjetivos repetidos e deixo para que a imaginação do leitor preencha as lacunas), e um salto preto reluzente. Tudo em seu aspecto me lembrava roupa de loja, o que me traz uma sensação ruim com suas problemáticas, mas inserida em tal contexto me trazia outro clima. Uma elegância de apartamento (outra vez, use a imaginação para entender, porque eu escreveria um texto inteiro associando o que a roupa daquela mulher me causou). E havia em cena, agora, a sua filha com um vestido rosa liso e uma meia calça discretíssima. Não lembro dos sapatos. 

    A menina, de treze anos, estava cantando uma música linda que eu não conhecia. Ela tinha os ombros um pouco curvados, a respiração um tanto descontrolada e um sorriso de aparelho muito característico da idade. O seu nervosismo era na medida conveniente. E eu encarei aquelas duas em cena, mãe e filha, como uma representação do passado e do futuro. O que uma mulher é, e o que pode se tornar. A leveza no rosto da filha era despretensiosa, e no rosto da mãe havia uma leveza amadurecida. Uma graciosidade que mostrava confiança e experiência. "Acho que a mãe dela escolheu esse vestido", e pensei sobre como ela estava entrando num mundo que não era dela, e onde talvez escolhesse ficar. O mundo é violento. Mas a gente faz o possível para encantar e se deixar saudável. Pensei na mulher mais velha "Como ela chegou ali? O que ela passou pra ser como é?" ela não parecia sofrida. 

    E ao final dos aplausos, como um aceno de cabeça do universo às minhas observações silenciosas, a menina fez menção de descer pela frente do palco, ao que sua mãe disse, com um tom muito fofo mas ainda elegante: "Não, não, não, por trás" e terminou com um "Tudo bem", bem conformado quando a menina desceu pela frente do palco assim mesmo. 

    Saí meio chateada por ter que voltar para a minha vida normal depois de um momento tão bom. Embora a vida seja cheia de momentos ímpares que aparecem de repente. Pensei outra vez em como subestimo o potencial de tais oportunidades, em como as deixo passar. Esse pensamento foi reforçado quando, passando por uma loja de quadrinhos mais tarde na mesma noite, me deparei com várias referências que eu gosto, ou gostaria de conhecer, e lembrei de como me empolgo com esse mundo do qual me afastei. A cultura pop (e a popular), a arte, os animes, os quadrinhos, revistinhas e artistas da internet com suas tirinhas, artistas da cidade com seus climas de bairro do limoeiro ou de mesa de bar, violência e putaria numa coletânea que eu poderia gostar... Se tem um rumo pra seguir é esse. O rumo que eu sei que funciona, de se deixar ser tocada, de nichar, de cavar mais fundo no que eu arranhei e gostei. Permitir que a identidade do presente seja a nostalgia boa do futuro. 

    E tem as companhias. A amizade deve ser justamente apreciar os acréscimos que cada personalidade faz num momento ímpar. Ver meus amigos chorando ao ouvir o tema de Túmulo dos Vagalumes e poder marcar de assistir muito em breve. Desejar a presença de alguém que eu queria que pudesse se emocionar junto com a gente. Voltar pra casa discutindo sobre acesso a cultura e sobre razões pra existir. Rir e se sentir segura. Tudo isso, só uma parte interessante do todo que foi essa noite de ontem. A vida é muito cheia, e no vazio (ou na oportunidade, no espaço) as coisas que enchem acham lugar pra escapar e se mostrar. Cabe a nós tentar ver.

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