Eu estava escovando meus dentes e pensando sobre privilégio. Num país onde 5,5 milhões de crianças não tinham o nome do pai registrado em 2011, ter pai e mãe já é um privilégio. A lista aumenta se for ver minha criação repleta de liberdade, o ambiente diferenciado em que vivo devido a personalidade das pessoas que me cercam, o afeto. Além disso a questão de não passar necessidade, ter acesso a saúde, lazer, educação, tecnologia, e no que isso resulta?
O que tenho feito com toda essa oportunidade que me foi dada, e que aparentemente não precisei me esforçar pra ter?
Me pego pensando nisso quando lembro que estamos em quarentena. As pessoas dizem para que não nos cobremos muito pois todo mundo anda mal. Porém eu não ando mal. Sempre gostei de ficar em casa, e percebo como é injusto que algumas pessoas não tenham condições de estar bem em casa, ou sequer de estar em casa; e como outras pessoas estão isoladas mas emocionalmente abaladas. Isso ainda não me atingiu e eu agradeço que não, entretanto, apesar de mais esse privilégio, o de estar tranquila e bem, eu permaneço letárgica me limitando a pequenas atitudes dentro do imenso período que é o dia e praticamente ofendendo tudo isso que me cerca.
Sempre foi assim, me vi cercada de oportunidades e deixei que elas se fossem. Deixei de aproveitar.
Me deixa pensando quando lembro de amigos que passam uma barra. Não têm acesso a água encanada, não tem dinheiro pro ônibus, passaram uma vida de sofrimento, têm problemas em casa... Entretanto quantos deles são incríveis, pessoas de personalidade radiante, empáticas, críticas, inteligentes e ativas. Que fazem mil e uma coisas apesar dos pesares...
E eu sem pesar nenhum vegetando no mundo...
Não estou dizendo que queria que as coisas fossem difíceis, quanto mais fácil melhor! Mas é que parece muito injusto que eu possa passar tanto tempo da vida como passo. Injusto com quem não pode e estaria aproveitando melhor que eu, e injusto comigo mesma por não me dar a vida que eu deveria estar vivendo.
No começo de maio tudo mudou. Eu comecei a fazer caminhada, faculdade, curso e outras coisinhas. A vida não estava ideal mas a sensação de ter dias enormes era maravilhosa. Chegava em casa com quatro camadas de suor diferentes. Foram uns quinze dias intensos até entrar na quarentena. A partir daí as coisas voltaram ao que era. Perdi o sopro de músculo que minhas panturrilhas estavam criando. Mas ganhei em gordura na barriga. Vomitei, tive dor de cabeça, veio a indisposição. Agora sinto desconfortos na coluna. Não estudo, não vou a aula. Um rascunho de rotina se perde entre linhas e anotações. Rastreio meus hábitos mas preencher a tabela não é um dos hábitos.
Meu humor muda as vezes, ver as tarefas se acumulando me deixa um pouco irritada, ansiosa, desanimada.
As vezes quando faço um trabalho, um texto, me vem o sopro de energia. Mas é sempre uma batalha interna entre a letargia e a animação. Entre três horas da manhã me prometendo acordar cedo no dia seguinte e uma hora da tarde me prometendo dormir cedo para não repetir o ciclo.
Uma vida de promessas quebradas.
Acúmulo, preguiça, letargia.
Um dia no meu último ano do ensino médio, quando eu estava frequentando pouco as aulas e bobocando na vida meu professor veio saber o que estava havendo. Mais de um na verdade. Estava ameaçada de reprovar por falta, e um deles disse que se fosse por ele eu não passaria. Se não fossem as faltas seria a recuperação em física, já que em química o professor me dava ponto.
Então me perguntaram e eu dizia "nada... É só falta de interesse" e via a decepção estampada no rosto deles. Sempre transitei entre essa linha de aluna boa, destaque em alguns pontos e desânimo em outros. Não à toa reprovei por faltas no último ano do fundamental.
Pode ser que refletir sobre seja o primeiro passo, mas caramba, devia ser algo demorado assim, o processo de mudar?
Eu obtive melhoras em muitas áreas da vida com o passar do tempo, no autocontrole, na paciência, perseverança. Mas apesar disso ainda falta tanto pra eu me por nos lugares onde quero estar. Pois até então parece tudo uma questão de sorte. Muito mais sorte, do que mérito.
Não culpo a quarentena por ter cortado meu clima de maio, eu ja estava rareando mesmo.
E em casa volto ao dilema. Parece que estou isolada em uma bolha de perfeição, poderia viver o resto da vida assim. E é absurdamente triste pensar em quem me garante estar assim.
Como posso levantar uma bandeira feminista se permito que minha mãe carregue sozinha a maioria das tarefas de casa? Às vezes as que ela não pode fazer por alergia, e em detrimento do seu tempo de lazer e estudo?
Como estar tranquila em minha redoma se meu pai precisa trabalhar todos os dias, acabando com a própria saúde, se sacrificando e correndo o risco de se contaminar? (parêntese para enaltecer a calma e a competência dos meus pais em lidar com isso tudo e mais um pouco) E imaginar as pessoas que trabalham em um supermercado pra que eu possa comer meu bolinho? E imaginar as pessoas nas grandes cidades tendo que andar em ruas vazias e perigosas? E imaginar quem oferece perigo e porque, se é por falta de apoio, de amor, de condição de vida.
E como viver feliz sabendo o quanto tenho sido inútil para mim e para os outros diante do nosso belo quadro social?
Agora o que eu penso a bastante tempo, é que eu deveria usar esses privilégios pra ajudar outras pessoas a melhorarem de vida. Fazer um trabalho de formiguinha em prol da igualdade. Aliás, nem questão de privilégio, mas de vida mesmo, que eu deveria fazer algo por alguém. Mas se sequer consigo ser uma professora decente para os meus irmãos, ou uma filha decente para os meus pais. Ou uma cidadã decente que estude a política e a história do seu país. Ou mesmo uma pessoa decente que cumpra as promessas que faz a si mesmo.
Pra quem não sabe eu curso licenciatura em teatro. Só de ter o apoio de minha famíia em uma faculdade de artes ((a terceira tentativa de faculdade)), já contamos mais um ponto pra lista. Eu gostaria de me apropriar do conteúdo, das possibilidades, da formas de fazer e ser uma futura artista e professora que pudesse ajudar meus alunos e as pessoas que vissem minha arte. Mas parece que eu olho o caminho e sento na pedra em frente a ele esperando algo me empurrar.
Nunca gostei de ouvir que a gente aprende através da dor. Porque eu não gosto de dor e não me parece certo colocar isso como algo essencial. Mas parece inegável que é uma das formas de se aprender.
Minha mãe me contava uma metáfora sobre isso:
Duas pessoas estão no alto de um morro discutindo que se caíssem dali iriam morrer. Uma das pessoas resolve testar e se joga, morrendo lá embaixo. A segunda pode aprender vendo o fato, ou pode se jogar pra testar se morre mesmo.
Entretanto nem todas as pessoas que aprenderam através da dor puderam escolher isso, ao menos não nessa vida.
Já meu pai me disse uma vez que não gostava da ideia de que quem conhece a verdade vive triste. É uma boa ideia a dele: na verdade só vive triste quem conhece a verdade e não faz nada pra mudar. Mas pessoas que dedicam a vida a fazer o mundo melhor por mais que estejam cercadas de sofrimento são felizes. Pois elas estão fazendo a parte delas pra melhorar.
Eu não me culpo pelos problemas de desigualdade que nossa sociedade apresenta, e que vêm se agravando/escancarando durante a pandemia. Mas me culpo por não fazer a minha parte sobre isso. Quando na verdade eu tenho ferramentas para melhorar a vida das pessoas mesmo que um pouquinho. Mesmo que bem perto de mim.
Falta interesse.
Ainda meu pai diz que se você quer mesmo algo que pode fazer você faz. E se não faz é porque não quer de verdade.
Aqui me despeço com a esperança de acordar relativamente cedo amanhã. Se cuide, fique em casa tanto quanto possível, e agradeça.
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