quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Gente da parede.

Uma vez meu avô me chamou na varanda e, olhando fixamente para a parede em frente, me perguntou porque não conseguia desenhar se só ele podia ver. Talvez você não conheça o meu avô, mas quem conhece sabe que muitos anos atrás ele pintava montes de rostos na sua parede de tijolos. Rostos que só ele via, formas. Deixo abaixo o registro do legado dele, porque a neta deu pra ver também:



[pausa pra me organizar para a boa escrita, isto é, ir deitar]

Pois bem, eu respondi ao meu avô algo como o fato de só ele ver não dar a ele a habilidade de reproduzir (se não disse antes, acrescento agora, que ele não possui aquilo mesmo que só ele veja). Dei o exemplo da paisagem, posso ver, (posso estar sozinho, pode ser um evento único) mas isso não me dá habilidade técnica pra reproduzir. Por isso o jeito mais simples é mesmo contornar de tinta essas pequenas formas humanoides e deixar que vivam para os outros também. 
Mas o desenho não é a única forma de se aproximar das formas. A doze anos atrás eu estava me mudando, e entrei pela primeira vez no banheiro da casa nova. 

A madazinha criança sentou no vaso sanitário e, olhando a parede que ficava bem próxima, coberta dum azulejo salpicado de verde lodo de praia, verde vintage e branco, deu de cara com uma caveira. Com medo de ter medo da descoberta tratou de se enturmar logo com ela.  E sempre que ia no banheiro puxava um papo com a caveira que ficava em frente. Ela não ligava pra essas coisas do lado de cá da parede, e eu tampouco compreendia o que se passava do lado de lá. Mal me recordo das conversas pois eram todas leves, acredito que falava do meu dia, fofocava de algum pensamento. Pra caveira tudo estava sempre bem. Um dia me mostrou sua família. Quem diria? A caveira vivia com a companheira e dois filhos, um menino e uma menina. O menino, se bem me lembro, usava boné, e a menina lacinho cor de rosa, embora só se enxergasse verde. Curiosamente todos se pareciam demasiado com o pai, e não conseguiam falar comigo todos juntos, era um por vez. 

Nunca apresentei a minha família pessoalmente para a caveira do banheiro, mas se lerem esse texto vão conhecê-lo indiretamente. Nem me recordo, mas desconfio que me despedi deles quando fui embora daquela casa, eram bons amigos. 

Olhar a parede é como olhar pras nuvens, pela minha experiência uma parede manchada, úmida ou mofada é mais cheia de vida do que aqueles algodõezinhos flutuantes. Eles são muito bonitos sem forma, e vivem mudando, embora isso renda uma narrativa aqui ou ali. A parede demora a mutar. Quem vê pode acessar muitas dimensões, mas a imagem permanece estática. 

Agora encontrei um outro amigo de banheiro. Amigo não, uma conhecida. É uma bruxa. Só aparece a noite quando estou escovando os dentes e tendo ideias. Ela não fica na parede, mas no teto. Hoje estava dando uma boa olhada e acho que talvez pareça mais uma caveira ou um rosto meio deformado do que uma bruxa. Afinal ela não tem chapéu nem vassoura. Mas se me disse que é bruxa eu acredito. Se espreme entre os caibros e fica olhando o movimento. É de poucas palavras. Pensando bem nunca me dirigiu nenhuma. Talvez eu esteja ficando velha e perdendo a habilidade de chegar nel


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