Esse conto foi criado em conjunto com uma amiga para estudar a criação de roteiro a partir de objetos.
Essa história não começa com “era uma vez”, pois todos os dias na casa da família Carls era igual. O mais atarefado dessa casa era o mordomo Jarbas, que detinha conhecimento de todos os aspectos da casa, desde a qualidade da grama do grande quintal, até o título de cada livro ou bilhete da biblioteca.
Durante aquele fim de semana a família havia ido a um piquenique e deixado Jarbas sozinho no comando da casa, como sempre. Porém, apesar de parecer o personagem principal desta história, o mordomo logo é confrontado por um cavalo falante, que lhe rouba completamente a cena.
“Desenha-me uma flor” disse o recém-chegado.
O mordomo, por força do hábito, indica a entrada da casa e prepara-se para servir um chá ao estranho, sem jamais notar o estranho chifre que despontava da testa do cavalo.
O recém-chegado acomodou-se no sofá, deitado como um membro da realeza equina.
Enquanto Jarbas caminhava em busca de papel e caneta ele começa a notar a estranheza daquela situação. Estacou de pronto ao perceber que deixara um ser estranho entrar na casa que estava sob sua responsabilidade, e dando meia volta procurou espionar pelo canto da porta o comportamento da visita.
Porém, ao olhar para a sala, encontrou-a vazia. Aflito, Jarbas inicia uma busca pela casa, principiando pelo quarto do casal onde havia o cofre com joias da família.
Ao encontrá-lo vazio, ele seguiu pelos outros cômodos. Não estava em nenhum dos dez quartos da mansão, não estava na grande cozinha, tampouco na sala de jantar, ou roubando maçãs do pomar. Nem sequer tomando banho em uma das jacuzzis espalhadas pelo imóvel. Também não parecia estar apreciando o museu particular da família, ou assistindo filme em seu cinema anexo. Sequer parecia uma tentativa de roubo do jatinho.
Até que, por fim, precisou descer do carrinho elétrico para conferir o único cômodo que restava, e que possuía uma porta estreita demais para o veículo: a biblioteca.
Ao chegar se deparou com o cavalo deitado como realeza no chão da biblioteca lendo um livro, com outros tantos volumes ao seu redor. Ele lia as palavras em voz alta, e parava por um momento, como se esperasse que algo acontecesse. Em seguida, passava a ler o texto seguinte.
Jarbas percebeu neste momento que o invasor não parecia querer nada de valor, nem prejudicar de qualquer modo os habitantes do lugar. E resolveu se aproximar e tentar descobrir suas intenções.
Para tanto, pegou papel e pena, e sentou-se a escrivaninha para desenhar a flor solicitada.
“Você ainda quer que te desenhe uma flor?” pergunta o mordomo.
O cavalo indicou com o chifre um papel ao seu lado, que o mordomo descobriu ser um garrancho com formas vagamente semelhantes a uma flor.
Jarbas, habituado por anos a disfarçar a graça que achava diante dos desenhos dos filhos de seu patrão, apenas deu um leve pigarro que encobriu o riso, e mostrou a flor que havia desenhado para seu visitante.
O cavalo meneou a cabeça e assentiu, permitindo que Jarbas substituísse seu rabisco deformado pelo desenho da flor.
E como nada dissesse, o mordomo perguntou se seu estranho visitante procurava um título específico, orgulhoso de conhecer toda a casa como a palma de sua mão.
O cavalo detém sua leitura e com a voz carregada de nostalgia conta de sua história como criança-flor, de como gostava de ver tão perto a beleza das outras flores e sentir o vento em suas pétalas.
Contou das cócegas que lhe faziam as patinhas das abelhas que compartilhavam o pólen, e das gotas de orvalho pela manhã.
Seu único desejo era voltar a ter aquela vida da qual fora privado por sua arrogância e vaidade, amaldiçoado por uma borboleta, aparentemente comum, que viu-se negada a pousar naquela flor.
Como poderia o ser humano imaginar que uma inocente borboleta, com suas vestes aladas laranjas e pretas, poderia ser possuidora de tamanho poder, para decidir sobre o bem e o mal? Como poderiam compreender os mistérios da natureza?
Dessa vez, ao olhar o cavalo, o mordomo percebeu o chifre em sua testa, e um brilho peculiar em seu olhar. Sua crina estranhamente dourada em contraste com o branco de seus pelos.
Percebeu, de repente, que já lera um livro com aquele mesmo personagem. Num ímpeto, ele dirigiu-se a estante próxima a janela, onde havia os livros infantis, e procurou pelo livro intitulado “Meus primeiros versos”.
Ao encontrá-lo folheou até o poema “O cavalinho branco”, e, ainda de costas para o visitante, perguntou-lhe:
“Quem lhe deu indicação para vir até aqui?”
O unicórnio olhou para o mordomo, interrompendo pela segunda vez sua leitura, e disse-lhe:
“Uma velha amiga abelha indicou-me seu amigo pato, que conhecia um cachorro, que conhecia um gato, que conhecia uma lagartixa, que houvera falado uma vez com um rato de biblioteca que conhecia um livrinho de capa azul, capaz de anular minha maldição.”
O mordomo então lhe diz com ares de desconfiança:
“Tudo bem você voltar a ser uma flor... Aqui na biblioteca?”
“Eu terei minhas raízes. Seria demais pedir para que você me plantasse num jardim, com uma bela vista?” disse o unicórnio.
Jarbas sentiu a pureza do unicórnio e não via razões para negar aquele singelo pedido. Então ele se aproxima do unicórnio e começa a recitar o poema numa voz emotiva. Muita distinta de toda a sua rotineira indiferença e servidão.
Logo um suave brilho dourado começa a surgir do chifre do unicórnio, e em seguida todo o seu pelo começa também a brilhar.
O mordomo se vê forçado a cobrir os olhos diante de tanta luz, e quando volta a enxergar vê uma margarida branca com as raízes expostas no chão do aposento.
Rapidamente, Jarbas pega um vaso e coloca dentro a margarida, preparando-se para plantá-la no jardim da mansão.
Enquanto leva o vaso para fora, pensa no melhor lugar para plantá-la, onde possa sentir o vento, o orvalho e apreciar as flores de que havia falado. Decidiu-se por plantá-la próxima a fonte junto a um canteiro de rosas, onde se destacaria e poderia apreciar a bela vista e o doce cheiro de suas novas vizinhas.
Após esse episódio incomum, que não durara mais que uma tarde, o mordomo passou a visitar com mais frequência as flores, bem como ver cores novas ao seu redor, se libertando da indiferença que carregara até ali. Quase como se tivesse deixado de ser um boneco de madeira, sempre a postos, e houvesse se tornado um humano de verdade.
Os objetos que basearam o texto foram, da minha parte, um livro de versos que ganhei na infância e um unicórnio de gesso que pintei na praça em um dia bom. E da parte de minha amiga foram uma flor feita de palha e um boneco de madeira que ela usa como referência pra desenhos e chama carinhosamente de Jarbas, por causa da posição das mãos.
Adoro contos fantásticos. O seu é gosotoso de se ler. É fofo. Tem muito mistério e um final feliz. O mordomo e a flor parecem se tornar amigos, o que me recorda o pequeno príncipe, mas é uma história muito distinta. O encontro entre o unicórnio e o mordomo transformou o dois. O primeiro pôde recobrar seus dias mais felizes e Jarbas deixou de agir mecanicamente e se humanizou, passou a se importar.
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