segunda-feira, 27 de junho de 2022

A academia me fez concordar com o Guimarães Rosa.

 "Vivemos esperando o dia em que seremos melhores" dizia Jota Quest. E com minha recente entrada na academia e algumas poucas experiências apresentando cenas pra um grupo no teatro, descobri que pra essas coisas pelo menos -- não cabe a mim dizer se pra todas -- a gente nunca se sente pronto. Não tem texto bem decorado e figurino que te faça saber, porque não tem como saber até acabar, que vai dar tudo certo. E a gente fica nessa ansiedade achando não que algo vai dar errado, nem sempre, às vezes só nervoso de aparecer pra tanta gente e apresentar algo que sempre pode ser melhor. E a gente não se sente pronto. Porque dava pra ter passado mais uns dias passando texto, dava pra ter ajustado a iluminação, talvez simplificar mais os diálogos ou ter pensado num objeto de cena além de uma placa com o nome do cenário. 

Mas aí quando você entra em cena, e vai acontecer, a ação é realizada e acaba. Passa tudo rápido e a gente descobre que tava pronto sim. Talvez não tanto quanto queríamos, mas o suficiente. Então porque que antes de pisar no palco não parecia?

Na outra situação, em que me encontro agora, a da academia, ocorre que eu me arrumo e fico esperando aquele momento em que vou me sentir pronta. Penso no esforço que vou ter que fazer, no braço morrendo, na perna ardendo, e sei que agora não tô no clima pra isso, bem deitada na cama. Mas daí com uma transformação digna de Steveson de repente estou me alongando e de repente estou na cadeira puxando peso. Não há transição da minha vontade antes disso, eu só estou pronta quando eu estou lá. E é esse o ponto. O estar pronto às vezes é só ter saúde. E uma legging. 

Eu esperei algumas semanas pelo momento certo de trancar a faculdade.

Eu esperei por alguns meses o momento ideal pra fazer academia.

Esperei por muitos meses o momento em que começaria a ficar feliz de novo.

Todos esses momentos foram afetados pelo tempo, se tornaram mais urgentes, mais presentes, mais incômodos. O tempo ajuda e muito a curar, ajuda a resolver as coisas e às vezes a deixar elas mais compreensíveis. As coisas mudam, a gente muda, e tudo vai se encaixando. 

Mas nesses três exemplos as coisas só aconteceram quando eu escutei a urgência do tempo. Quando eu fui e fiz mesmo sem me sentir tão pronta assim. E nem me aprofundo aqui nas inúmeras coisas que eu entreguei pro tempo e ele passou correndo antes que eu me virasse pra olhar. Roubou de mim. Levou embora. 

Me disseram recentemente "eu só me arrependo do que eu não fiz". Não é que eu me identifique totalmente com essa afirmação, mas eu sei que é muito mais fácil eu me arrepender por não fazer algo do que me arrepender de ter tentado. Porque a experiência pessoal é valiosa demais. 

Eu gosto da segurança, gosto de me sentir confortável e uso aqui as palavras da minha professora que me acalmaram como uma mão certeira que para o balanço da rede: 

"Eu passei muito tempo buscando o lugar onde me sinto confortável. E agora que eu achei não vou sair dele. Eu não vou ser preguiçosa, mas não vou abandonar meu conforto". 

Mas o conforto está também em lugares inusitadíssimos. Como uma academia toda colorida tocando música duvidosa, ou uma sala preta cheia de gente mais ou menos conhecida falando coisa que dá sono. 

A vida tem muito disso, segundo Chorão "às vezes faço o que quero, e às vezes faço o que tenho que fazer", a maioria das lutas é pelo equilíbrio. Largar o conforto aqui pra descobrir o conforto mais na frente. E o mais doido são as flutuações desses parâmetros. E o quanto a gente se acostuma. E vai ficando. Cria raiz, e cria gosto pela coisa. 

Não quero viver a vida somente esperando o dia em que seremos melhores. Eu já sou o suficiente pra começar um monte de coisa que eu botei na mão do tempo. 

E quando me dou conta disso parto pra outra, a de organizar, priorizar, objetivar, decidir o que e como eu vou passar o tempo que eu tenho. E nessa negociação nem sempre parecem ter escolhas certas ou erradas. Dentre um monte de possibilidades distintas, meio rascunhadas, mas sabendo que uma delas vai acontecer e depois vai acabar, acaba que todas as escolhas são a certa. E eu posso escolher... Agora e ainda. 

Dentro de certas vontades, limites, possibilidades, enfim, dentro da zona de ação que eu tenho, com o pouco que posso tentar prever. Eu tenho que parar de esperar o momento em que vou estar vivendo. E parar de esperar uma autorização metafísica pra ser feliz ou simplesmente estar tranquila. Já sentiu que passa a vida toda esperando algo, ou muitos algos, que nunca vêm? Que na verdade passa a vida esperando... Ela mesma? 

E termino esse texto que se disfarça de leve mas esconde uns tantos pesos, com um poema bonito do Guimarães Rosa porque eu li uma frase e achei bem bom pra terminar, e aí li o texto inteiro e fiquei achando melhor ainda.

"O correr da vida embrulha tudo,
a vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem.
O que Deus quer é ver a gente
aprendendo a ser capaz
de ficar alegre a mais,
no meio da alegria,
e inda mais alegre
ainda no meio da tristeza!
A vida inventa!
A gente principia as coisas,
no não saber por que,
e desde aí perde o poder de continuação
porque a vida é mutirão de todos,
por todos remexida e temperada.
O mais importante e bonito, do mundo, é isto:
que as pessoas não estão sempre iguais,
ainda não foram terminadas,
mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam. Verdade maior.
Viver é muito perigoso; e não é não.
Nem sei explicar estas coisas.
Um sentir é o do sentente, mas outro é do sentidor.”
João Guimarães Rosa, Grande Sertão Veredas

Um comentário:

  1. Acho interessantíssimo esse paralelo entre entrar em cena e se exercitar porque de fato pra essas duas ações não sabemos o desfecho exato e nem é possível prever, o seu desempenho é diferente a cada dia pois todos os dias nosso corpo acorda diferente e nossas necessidades também são diferentes em cena ainda mais em teatro isso também ocorre, recentemente participei de um campeonato de Karatê e por mais que tenha me preparado ao máximo possível ocorre como citado no texto só tem como saber o desfecho quando realmente acaba, e porque seria diferente com a vida não é mesmo? Excelente texto!

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