quinta-feira, 11 de maio de 2023

A literatura gótica ressoa em mim porque escreve além das linhas.

Quando me aflijo com a vida e seu inescrutável feixe de caminhos, me vem a mente um dos elementos mais bonitos de A Cor Púrpura, que é a sensação de sermos todos uma comunidade. Um pequeno vilarejo com pessoas e suas vidas ordinárias que, mesmo depois de tudo, podem se perdoar e viver em harmonia. 

"But I won't cry for yesterday, there's an ordinary world somehow I have to find"

Tenho visto meio cinza, presa dentro da minha própria cabeça. Queria saber como romper a película pra entrar em contato com o mundo. Sinto que estou inquieta, embora menos que antes, observando situações que posso relevar, remoendo questões cujas conclusões possíveis já foram alcançadas, esperando a vida acontecer e ser atingida pelo baque de um despertador ou o comentário de alguém para que algo em mim se manifeste. 

Em resumo, estou a mercê do afeto do mundo, e a balança pende pra esse lado de um modo perigoso, pois não tenho procurado afetá-lo. Estou a mercê de uma consciência rasa e incômoda, talvez covarde, talvez desocupada. Se fosse mística diria que alguma energia minha desalinhou. 

O único caminho possível para afundar em mim, ou para tocar o mundo, parece ser a ação que atravessa o desconforto como uma agulha que fura uma película gelatinosa.

O jogo da harmonia é delicado e muito difícil, seu véu nunca parece cobrir todos os aspectos da minha vida, e talvez seja bom para que eu tenha espaço para respirar fora disso. Mas quero puxar mais, desenrolar mais, estar embaixo desse calor com um coração cujas batidas não me incomodam e com uma sensação profunda de preenchimento. 

E quando algo de fora me impacta com força o suficiente para romper a película, mesmo que com um dano tão mínimo que mal se nota, sou puxada pela cabeça para respirar o primeiro fôlego profundo, instintivo e desesperado desse mundo que me cerca. 

A atenção que eu dou não tem sido suficiente, em alguns momentos, para colorir o que vejo. Percebo a atenção indo e voltando para o que existe aqui e para o que existe na tela ou na página, ou na minha cabeça. Percebo que a atenção desloca tudo com ela, tudo que eu sou. Mas, junto com minha coluna torcida, a consciência rasa ainda me cobra, me ameaça. O que ela quer de mim?

Procuro aceitá-la. Ofereço frases de acalento, ofereço a verdade mais pura e genérica que contemple tudo que ela possa temer. Ofereço o que posso, mas o que preciso, sei, é deixar que ela grite seus temores cíclicos e vãos enquanto cuido da minha vida, e permito que essa parte de mim deixe de ser hábito, e não ouça suas ameaças mas sim sua quietude. Quero que se aquiete essa consciência. Faço com que enfraqueça mais a cada dia e me deixe ser o que quero, e não me permitirei, citando Tudo em Todo Lugar, que nada me distraia dos momentos que desejei e não quero que acabem.

"Eu acho que Deus deve ficar fora de si se você passa pela cor púrpura em um campo qualquer e nem repara."

A culpa, o desconforto, o medo... Não posso deixar que nada disso rasteje pelo chão e agarre meu tornozelo. Não posso deixar que me impeçam de viver o que preciso, e o que posso, antes que tudo se acabe e a memória que se dissipe seja... Nada. 

Foi Belchior quem disse: nada é secreto, nada é misterioso. 

O jogo de luz e sombra, o jogo da harmonia, do equilíbrio, de deixar ser secreto e depois trazer à luz. De se encantar com a vida como um vampiro recém-criado, e de se acalmar evidenciando a naturalidade de tudo nas mãos de alguém ou nas próprias quando o terror da própria existência se opõe sobre nós e preenche todos os espaços. E essas delícias e horrores quem descreveu foi Lestat. 

A comunidade, o Jardim Selvagem, tudo que é possível de ser feito sem que se precise pensar tanto ou carregar tanto melindre. Questionar menos ao cosmos e mais a si mesmo, confiar que o que quer que aconteça, será suficiente, será mais que o bastante, que o que está por vir é sempre melhor do que o que já foi. Que a pessoa que me torno será sempre a cura da pessoa que estava sendo a pouco. 

E se tudo mudar ao meu redor... Eu mudo quem sou? Eu deixo de ser eu? Quero deixar de ser? Quais aspectos de mim eu quero que ainda sejam?

"And as I try to make my way to the ordinary world I will learn to survive"


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